Fan-Jovem: Fãs, personagens e a Mídia - Parte 2

Fãs, personagens e a Mídia - Parte 2

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Confira a crítica do jornalista Paulo Ramos, do Blog dos Quadrinhos.

E se o Homem-Aranha tivesse morrido?

O jornalismo vive de informações e de boas histórias. O fim desta semana (do dia 09 de novembro de 2007) trouxe um personagem jornalisticamente saborosíssimo.

 

Riquelme Wesley Maciel dos Santos, um menino de cinco anos, salvou um bebê de um ano e dez meses de um incêndio em uma casa em Palmeira, em Santa Catarina.

 

O detalhe que chamou a atenção da imprensa: ele vestia uma roupa semelhante ao uniforme do Homem-Aranha. Sem máscara, o traje deixava os braços e as pernas do menino de fora.

 

O assunto ganhou projeção após ser exibido na sexta-feira em uma reportagem da RBS, afiliada na TV Globo no sul do país.

 

Não demorou para a notícia ganhar destaque em outros veículos informativos.

 

À tarde, já era uma das chamadas da página principal do UOL.

À noite, a notícia foi reexibida no Jornal Nacional em tom de crônica, narrada pelo apresentador Willian Bonner.

 

Neste sábado, a foto do menino estampa a capa da "Folha de S.Paulo" e do "Estado de S.Paulo". As reportagens traziam mais ou menos o mesmo enfoque.

 

O fogo ocorria na casa da vizinha, uma construção de cinqüenta metros quadrados, feita de madeira.

 

Aos prantos, a mulher percebeu que a casa pegava fogo. Ela correu para o quarto onde estava a filha. Viu as chamas. A fumaça e o fogo inibiram a entrada da mãe. Mesmo assim, Riquelme, que brincava na casa, invadiu o quarto e salvou o bebê, deitado no berço.

 

Oitenta por cento da casa foi destruída. Ninguém se feriu. Riquelme sentiu medo?

"Claro que não. O Homem-Aranha não é fraco e não tem medo", diz o menino, alçado a herói, em trecho da reportagem do Estado.

Os bombeiros tiveram registro rápida em todas as reportagens. Algumas nem os mencionaram).

 

Eles desaprovaram a atitude do menino, dado o perigo que correu.

"Ele poderia ter se tornado mais uma vítima", ponderou um dos bombeiros ao UOL.

Felizmente, ninguém se machucou. Mas, como o enfoque dado ao caso foi lúdico, uso o artifício para imaginar um outro cenário.

 

E se o menino tivesse ficado ferido ou, pior, morrido?

 

Felizmente, não custa reiterar, não foi o que ocorreu. Mas esse desfecho trágico poderia ter ocorrido, como alerta o próprio Corpo de Bombeiros.

Será que teríamos na mídia o mesmo olhar lúdico do menino que se sentiu super-herói e tentou um ato de bravura?

 

Ou será que o olhar seria na influência que um personagem exerceu num garoto de cinco anos, a ponto de ele se sentir um herói e perder a vida num incêndio?

 

Os anos de convivência com a grande imprensa me levam a crer na segunda alternativa.

 

É daquelas pautas prontas: mostra-se a tragédia da morte do garoto e usa-se a roupa de super-herói como algoz.

 

A mãe, no velório, chora. Gera automática comoção. Os bombeiros -agora, sim, ouvidos com destaque- condenariam a atitude do menino, como já condenaram.

 

Os repórteres iriam em busca de especialistas em psicologia infantil para que eles dissessem que a criança, com roupa de um herói, sentia-se o próprio personagem.

 

Afinal, alguém iria lembrar, foi o próprio garoto quem disse: "O Homem-Aranha não é fraco e não tem medo."

 

O termo "quadrinhos" seria inserido nas matérias com o conteúdo pejorativo que ainda carrega (embora, sabemos todos, isso tem mudado a passos largos de dois anos para cá).

 

Pessoas ligadas a quadrinhos dificilmente seriam ouvidas nas reportagens para dar o chamado "outro lado".

 

Por um detalhe simples: a maior parte da grande mídia não tem um ritmo de notícias de quadrinhos e, por isso, não possui contatos na área. Mas algum jornalista lembraria no texto "a violência existente nas histórias em quadrinhos lidas pelas crianças".

 

Se alguma matéria citasse o mangá "Battle Royale" – no qual estudantes têm de matar uns aos outros -, o impacto seria ainda maior.

 

O enfoque da imprensa, em suma, de lúdico não teria nada.

A mídia voltaria à caça às bruxas de que os quadrinhos foram vítimas a partir da década de 1950 e que, ainda hoje, traz resquícios à área.

 

Felizmente, Riquelme dos Santos, vestido de Homem-Aranha, saiu ileso do salvamento.

 

Sem saber, o menino salvou também a imprensa de reproduzir o desgastado discurso estereotipado sobre as histórias em quadrinhos.

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